A não-intervenção e a hipocrisia do Ocidente
🦹A guerra da Ucrânia é um evento geopolítico de enorme complexidade.
ꦰEla desperta a questão de como um ordenamento constitucional democrático deve se comportar em face de atrocidades.
🐼Há uma conhecida expressão, cuja autoria é controversa, que afirma que a primeira vítima na guerra é a verdade.
💯Sem embargo, as tecnologias de informação e de transmissão de dados contribuem para mostrar, inclusive ao vivo, o que acontece em locais conflagrados, permitindo que ao menos parte dos fatos sejam incontroversos.
ཧNesta categoria, pode-se afirmar que entre Rússia e Ucrânia, a primeira é agressora e a última é agredida.
ꦉOu seja, a agressão russa caracteriza, além de crime de guerra, uma clara violação a princípios elementares das Carta das Nações Unidas.
𝓀Por mais que os países envolvidos no conflito possam ter pontos de vista eventualmente legítimos, não há como aceitar que a primeira providência, frente a divergências, seja uma brutal invasão armada.
༒Todo e qualquer país que pretenda honrar as conquistas civilizatórias não pode utilizar a força como primeiro recurso, no lugar da diplomacia.
Uma invasão armada a um país soberano, que mostra a banalidade do mal, utilizando a conhecida expressão de Hannah Arendt,1ꦿ é algo que não pode ser aceito, ao menos por quem comunga valores comuns ligados à preservação dos direitos humanos.
ᩚᩚᩚᩚᩚᩚᩚᩚᩚ𒀱ᩚᩚᩚNão é por menos que a Constituição de 1988, ao tratar dos princípios que regem a República nas relações internacionais (art. 4º), estabelece uma série de diretrizes, todas sensatas e equilibradas.
✃Dentre elas, a manutenção da independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a defesa da paz e solução pacífica dos conflitos.
🔜Tais diretrizes provocam importantes questionamentos.
🃏Como um país que segue a linha democrática deve ser portar quando outro é injustamente agredido?
🔜É possível, ao mesmo tempo, em um cenário de catástrofe humanitária, não intervir e preservar os direitos humanos?
💞Se buscarmos as respostas nos princípios da não intervenção e da prevalência dos direitos humanos, já se descortina uma verdade, no mínimo, inconveniente.
꧑Em um cenário de conflito armado, à cada minuto que passa, a situação das vítimas se agrava, sobretudo das mais vulneráveis, como as crianças e os idosos.
𒉰Esse trágico cenário impõe à comunidade internacional uma necessária reflexão quanto à viabilidade de alianças e parcerias comerciais com determinados países.
ౠSignifica rever a cultura de que podemos ter bons parceiros comerciais, ainda que sejam violadores de direitos humanos.
Os tradicionais sistemas de segurança coletiva, baseados em tratados como o da OTAN,2♏ não consideram uma ameaça à segurança global parcerias comerciais duradouras que financiam países que insistem em violar direitos humanos.
🦋A lógica dos tempos pós-modernos permanece a mesma de outrora. Negócios, negócios, atrocidades à parte.
🎐Vale dizer, nações que comungam dos valores democráticos e da bandeira dos direitos humanos não têm hesitado em manter prósperas parcerias comerciais com Estados que, incontestavelmente, perpetuam a violação a tais direitos de forma sistemática.
A Rússia é só um exemplo.
ওEnquanto as parcerias comerciais rendem dividendos interessantes, abrem novas frentes de negócios, pouco parece importar o modo como algumas nações parceiras tratam a sua população, vizinhos ou eventuais opositores.
🐽E esse, de fato, tem sido um comportamento que coloca o sangue dos ucranianos e russos nas mãos de boa parcela do Ocidente. E de uma parcela que, diga-se de passagem, se diz defensora dos valores ocidentais, da democracia, dos direitos humanos etc.
﷽Afinal, quem contribui para pagar os elevadíssimos custos de uma máquina de guerra? São, ao fim e ao cabo, os negócios que enriquecem muitas nações.
෴Muito se tem dito acerca das duras sanções econômicas que estão sendo impostas à Rússia pela comunidade internacional, inclusive contra os famosos oligarcas russos, pessoas que enriqueceram de forma indecorosa às custas de um regime cleptocrático e que ostentam seus itens de luxo mundo afora.
𓆉O que não se comenta, ao menos com a mesma frequência, é que grande parte desses oligarcas, que simbolizam a perpetuação dos donos do poder, não apenas investe no Ocidente, como mantêm parte de suas divisas em bancos ocidentais, em seu nome, ou de terceiros.
Isso significa que se o Ocidente, realmente, pretende dar um basta em conflitos como o que ora visualizamos de forma perplexa, deve começar a rever a sua atitude de tolerância frente a nações que insistem em violar direitos humanos e em investir na força como prima ratio.
Implica, igualmente, expor as próprias mazelas.
ꦏNão devemos ser ingênuos ao ponto de acreditar que esses oligarcas não contam com cúmplices no Ocidente.
🌼Para ficar no exemplo dessas figuras obscuras, há tanto dinheiro de origem russa plenamente visível em países que agora se mostram indignados com a guerra, que fica difícil imaginar que se desconhecia sua procedência.
❀Por exemplo, propriedades de famosos clubes de futebol, iates cujos valores de mercado são difíceis até mesmo de descrever, aviões, imóveis, carros de luxo e por aí vai.
Essa é exatamente a perspectiva que foi levantada por Paul Krugman, Nobel de Economia em 2008, em artigo publicado em 24/02/2022, no Jornal New York Times, sob o título Laundered Money Could Be Putin's Achilles' Heel3𝄹 que poderia ser traduzido como "o dinheiro lavado pode ser o calcanhar de Aquiles de Putin".
ꦅSegundo a correta análise de Krugman, pesadas sanções comerciais e financeiras contra a Rússia e seus oligarcas podem se mostrar eficazes, desde que o Ocidente mostre vontade e, sobretudo, esteja disposto a assumir a própria corrupção.
🅺A questão é que medidas dessa natureza esbarram em fatos muito desconfortáveis. Quem lava e armazena o dinheiro ilícito?
𓆉Na visão de Krugman, que parece irretocável, várias pessoas influentes no Ocidente, tanto no ramo dos negócios quanto da política, estão profundamente enredadas financeiramente com os cleptocratas russos.
✤Além disso, a partir do instante em que se decida buscar, de fato, esses recursos espúrios - medida possível -, tais ações acabarão por atingir outros praticantes do mesmo "esporte", que não são necessariamente russos.
🎀A precisa conclusão do analista é que tomar medidas efetivas contra aqueles que financiam o círculo de poder íntimo de Putin implica não apenas admitir, como também superar a própria corrupção do Ocidente.
🐲E isso, invariavelmente, leva à indagação: não se sabe até que ponto os respectivos países, que se consideram integrantes do chamado mundo democrático, estão dispostos a ir.
ꦡSeja como for, está mais do que na hora de refletirmos:
Que parceiros comerciais possuímos?
ꦺAté que ponto boas parcerias comerciais podem ignorar práticas perversas?
🍨Em que medida a segurança energética e a política de proteção do meio-ambiente podem depender de ditaduras?
𒀰O lucro e o superávit das balanças comerciais podem se justificar à custa de sistemáticas violações a direitos humanos?
ꦏA guerra na Ucrânia, em grande parte, é resultado de violações a normas internacionais praticadas no passado, inclusive recente, que não trouxeram nenhuma consequência efetiva contra os respectivos agressores, inclusive a Rússia.
🐟Quando tivermos em conta que a bandeira dos direitos humanos é superior a qualquer ideologia, estaremos em condições de perceber, com clareza, a hipocrisia do Ocidente.
﷽Quanto antes percebermos esse quadro, mais perto estaremos de um mundo melhor, onde a Guerra não será tolerada.
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1 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal🀅. Traduzido por José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschlandꦗ. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 546.
3 Disponível .